Crítica de SÁBATO MAGALDI
O Estado de São Paulo 12/09/1967

Navalha na Carne é apenas um espetáculo, mas como dói

A grande ovação, no final do espetáculo de ontem, no Teatro Maria Della Costa, prova que as autoridades andaram certas, ao liberar Navalha na Carne, depois de tanta incompreensão da Censura. Os aplausos em cena aberta, repetidas vezes, vieram, como uma descarga emocional para equilibrar o incômodo provocado por numerosos diálogos de violenta dramaticidade. A literatura teatral brasileira nunca produziu uma peça de verdade tão funda, de calor tão autêntico, de desnudamento tão cru da miséria humana como essa de Plínio Marcos.

Freqüentemente, o público ria de alguns palavrões ou de réplicas de sabor equívoco. Essa relação chegou a irritar-nos, como se nascesse de uma falta de inteligência do texto. Depois pareceu-nos que essa era uma válvula de escape para os espectadores não mergulharem num terrível mal-estar: um pouco mais de insistência na verdade e seria insuportável o clima dramático.

Plínio Marcos irmana-se a todos os escritores contemporâneos que decidiram fazer uma sondagem completa do homem, investigando em seus meandros menos confessáveis. Esse neo-realismo, que dispensa qualquer imagem embelezadora das nossas motivações, aplica-se com ardor sádico na busca das bases da convivência – um inferno impiedosamente descoberto e exposto. Esse jogo quase monstruoso de todas as personagens se porem a nu acaba, por paradoxo, numa como vida piedade pelo destino humano. Navalha na Carne termina numa infinita tristeza, sem qualquer concessão à melodramaticidade ou à pieguice.

Ruthinéa de Moraes vive a prostituta Neusa Sueli com admirável autenticidade. O corpo arriado, o andar típico, a fisionomia abatida – tudo nela se alia para realizar uma excelente criação, que não fica no lugar-comum ou no pitoresco. Paulo Villaça assume o ar ligeiramente postiço que deve ter o explorador de Sueli, exato desde a expressão fisionômica até a prosódia especial, cantando um pouco as falas. Composição surpreendente é a de Edgar Gurgel Aranha no homossexual Veludo: um ligeiro esgar de deboche na boca, a voz no limite justo que impede a caricatura, os movimentos de ombros reveladores da feminilidade. A maior virtude da encenação de Jairo Arco e Flexa foi s de evitar qualquer artifício, auxiliando a franqueza dos diálogos e das situações. Sem dúvida um ambiente mais fechado nopalco teria colaborado para a intimidade e a força exlplosiva do desempenho.

Três casais retiraram-se durante a representação. Anotamos esse fato, para prevenir as sensibilidades que poderia chocar-se nos próximos espetáculos. Navalha na Carne fere mesmo – como toda verdade lançada com indiscutível talento artístico.

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